Micropolíticas e o resgate do “Socialismo Utópico”



Vivemos o ocaso de uma era revolucionária no mundo, muito bem sinalizado no Ocidente pela abertura política do regime cubano, o que coloca grandes desafios aos pensadores sociais destes tempos.
A tomada social do Estado por qualquer via ficou extremamente difícil, como se a globalização tivesse colocado a política num círculo vicioso, especialmente nos países neo-colonizados. Sequer existe a segurança de que um regime realmente social iria sobreviver às pressões contrárias, como não sobreviveu na Guerra Fria -apesar de “hoje não haver aquele clima de rivalidades”, dizem alguns, ignorando que, para além das ideologias, boa parte das conquistas apenas usavam as disputas como pretexto para o seu próprio expansionismo econômico.
Diante disto, olha-se para naturalmente para horizontes mais imediatos, e aos poucos resgata-se uma ideia sorrateira que certas correntes “históricas” preferem ignorar - o “Socialismo Utópico”, através das práticas e propostas da micropolítica ou da política do cotidiano. A cultura que nasceu nos anos 60 deriva em grande parte deste novo olhar sobre os caminhos da mudança social, face as desilusões patentes com todos os ciclos revolucionários até aqui buscados, seja o burguês ou o proletário. 
Era necessário um novo modelo social, e se encontrou nos primeiros socialistas ideias e sugestões para construir um novo caminho, inspirado por certa aristocracia intelectual orientada para a busca de uma sociedade ideal. Nada a estranhar nisto, quando sabemos que a reconstrução da História, em especial do Novo Mundo (Américas) já vem apontando os seus ponteiros hoje para a sua terceira etapa social.
De imediato, a micropolítica se instala na ideia de comportamento. Amplia-se como um reflexo pós-moderno da pulverização das ideologias e também da subjetivização crescente do ser humano sob o peso do sistema opressivo. Fala-se também de relações sociais e consigo próprio, alcançando em algum grau questões econômicas –economia justa e sustentável, por exemplo, assim como liberdades sexuais.
Félix Guattari busca inventariar os subjetivismos presentes nas “micropolíticas” da sociedade capitalista. Na sua já célebre obra (com Suely Rolnik) sentencia: A questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade dominante.” (“Micropolítica - Cartografias do Desejo”) Ou seja, temos a liberdade de aderir ou não às práticas e ideias manifestas pelo sistema e pela cultura de massa –liberdade não obstante restrita, diríamos, enquanto subjetividade.
Ora, os subjetivismos têm a sua contraparte nas estruturas culturais, que podemos chamar de objetividades. Ambos dialogam entre si continuamente. O objetivismo é apenas –e com o perdão da redundância- a parte exterior do subjetivo. O sistema ataca a nossa subjetividade e substitui por outras que lhe interessa. Para isto vale-se de estruturas culturais, como a educação e a mídia, entre outros elementos tradicionais.

Buscando positividades

A pressão econômica e a aculturação capitalista fustiga e aliena a sociedade, mal deixando-lhe espaço para respirar, menos ainda para refletir. As cidades capitalistas são verdadeiras caixas-de-Skinner programadas para as pessoas buscarem compensações imediatas para as suas neuroses urbanas através do consumismo, sob o “reforço” contínuo da mídia comercial.

O próprio B. F. Skinner, no entanto, foi autor de propostas sociais positivas através da ciência comportamental. Sua obra “Walden II – uma sociedade do futuro”, sugere que “empreguemos o nosso conhecimento sobre o comportamento humano para criar um ambiente social onde levaremos vidas produtivas e criativas, sem com isso comprometer as possibilidades daqueles que nos seguirão, para que eles possam fazer o mesmo.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Walden_II)
Ou seja, através de reforços positivos, alcançamos manter um padrão de comportamento que não corroem as relações sociais. Não é diferente daquilo que se faz para o mal, porém desta vez serve ao bem. Muita gente se incomoda –ingenuamente- com estas ideias. Contudo, a consciência humana é como uma roda: quando para ela cai. A avaliação estática da consciência humana que faz o materialismo é utópica e ingênua.
Partindo da conscientização das manipulações “científicas” do sistema, podemos tratar de investir também contrariamente buscando “reforços positivos” libertadores. Quando praticamos uma yoga realizamos uma limpeza mental que nos afasta dos condicionamentos. A atuação em grupos reforça ainda mais este potencial, permitindo quase suportar a corrida cotidiana.

Outro recurso muito importante é o contato com a Natureza. Quem busca “espraiar” nos fins-de-semana também obtém importantes vantagens contra o stress. Na verdade a Natureza pode oportunizar muito mais, e podemos dizer que não pode haver “Walden II” de harmonia social sem antes existir “Walden – a vida nos bosques”, nome do famoso livro de Henry Thoreau considerado um dos primeiros trabalhos de inspiração sobre uma nova consciência. 
Mister porém é admitir que a pressão alienante é cada vez mais forte e poderosa, o que torna duvidosa a nossa capacidade de resistir incólumes. O mundo necessita avançar espiritualmente. E esta evolução cultural demanda um trabalho ambiental tão completo como for possível!

O “Socialismo Utópico”

O “Socialismo Utópico” é a forma pejorativa como foram denominadas por Marx e Engels as primeiras doutrinas sociais surgidas no começo da Revolução Industrial, através de filósofos como Saint-Simon, Charles Fourier e Louis Blanc, incluindo o anarquista Proudhon, nas suas visões daquilo que poderia ser uma sociedade ideal. Trata-se de formas de Socialismo Aristocrático que se funda -por exemplo- na capacidade do administrador em repartir com dignidade os frutos do trabalho e aprimorar as condições de vida dos trabalhadores. Citemos:
“Que tem em comum os ‘Socialistas Utópicos’? São pensadores que reagiram às contradições da industrialização (desigualdades sociais, exploração, miséria, etc., em um contexto de desenvolvimento econômico), e formulam soluções ideais a estes problemas ou, inclusive, ensaiam experiências de ‘novos modelos de sociedade e de produção”, alternativos ao sistema capitalista.”*
Os grandes idealistas sempre souberam renunciar ou repartir o que tinham, ou pelo menos usar os seus recursos para promover uma carreira de função social, cultural e espiritual. Isto também motivou idealistas e industriais do século XIX, e não é difícil encontrar traços de nacionalismo neste comportamento, embora se trata de manifestações de micropolíticas localizadas.
Ao contrário dos revolucionários, os “utópicos” propuseram uma sociedade igualitária através do reformismo, do filantropismo e do paternalismo.** Para os revolucionários, contudo, “não se trata de repartir e sim de dividir” na raiz os frutos do capital, coisa que se ampara unicamente em valores materialistas e menos na cultura. A exploração social não é obrigatória fora do “socialismo científico”, nem este tem assegurado a justiça social de maneira regular.

O Socialismo Utópico possui positivamente uma nota aristocrática. Os patrões não se inclinam pela exploração cruel do trabalhador, nem fomentam a luta-de-classes. Talvez influenciados por culturas de passado nobre (França, Inglaterra), num tempo ainda de transição.
Contudo, é possível avançar na formulação e na organização deste Socialismo Aristocrático. A ideia da filantropia pode soar burguês, porém reflete traços de idealismo e pode evoluir para a consciência social e até espiritual. Em Proudhon temos o famoso conceito de que “a propriedade é um roubo”, coisa que pode servir perfeitamente de base para os sistemas sociais idealistas da aristocracia ou do clero.
Assim, o feudalismo nem sempre afirmou-se sobre a propriedade, e a própria coroa muitas vezes foi consentida pelo povo, pelos nobres ou pelos religiosos. Nada era definitivo, tudo era condicional; todos poderiam ser destituídos caso não cumprissem a contento a sua função. Tal como existem bons e maus modelos lineares de república e até de democracia, o mesmo ocorre com os sistemas hierarquizados da monarquia e da teocracia. Sabendo disto, Aristóteles não se fixou num único modelo social, antes declarando ser o melhor aquele mais adequado para cada situação histórica.
A cultura deve avançar e para isto novos ambientes devem ser criados. A cidade não pode ser abandonada, assim como tampouco a Natureza. Uma nova síntese se faz necessária, com intenso intercâmbio entre as duas realidades. 
Contudo tal coisa não será criada dentro dos velhos sistemas sociais. Um novo sistema deve surgir, e ela se torna realidade pela manifestação das suas estruturas sociais, onde a materialização arquitetônica expressa o corpo das ideias e dos ideais.
O “socialismo científico” (como Marx e Engels tratavam as suas próprias ideias) desprezam os falanstérios utópico-anarquistas optando por se apoderar do Estado. Com isto temos na verdade visões radicalmente opostas: anti-Estado autonomista e pró-Estado regulador. Ora, aquilo que a verdadeira nobreza busca é a síntese da cidade, e vale lembrar aqui da importância histórica e cultural das Cidades-Estado na fundação das civilizações. As novas cidades serão uma fecunda síntese natureza-civilização, para equilibrar o homem e valorizar a sua integridade histórica.

New Harmony, Robert Owens
As comunidades intencionais são a melhor e a mais natural forma para colocar em prática a sociedade sem privilégios e nem classes artificiais. Estas comunidades podem ser coisas tão poderosas socialmente, que o stablishment muitas vezes as tem atacado e destruído “quase gratuitamente”. O sistema opressor é fortemente monopolista e não tolera concorrências, ainda assim a criação destas “vitrines alternativas” representa um caminho tradicional para a realização de mudanças sociais efetivas - e inclusive duradouras, por contar com sólidas bases culturais.
O ato criador determina uma ruptura com o devir “dialético” (ou com o carma, no dizer oriental) proposto nas utopias socialistas através das acomodações das lutas-de-classes, introduzindo uma nova potência criadora na cultura que resulta como avanço social.

** O materialista não hesita em ver paternalismo até nas diferenças sócio-culturais natas! Ninguém aprecia ser tutelado no mundo material; a questão é que o mundo simplesmente não é apenas material, e nem pode ser adonado pelos materialistas! A experiência disto não pertence todavia ao homem comum ou ao materialista, por esta razão os pobres sucumbem tão facilmente à Teologia da Prosperidade, doutrina que pode até ter seus efeitos em contextos econômicos favoráveis –não raro imperialistas-, mas que em meio à pobreza se torna apenas mais um braço da alienação e da exploração. Já quando um religioso autêntico afirma que possui credenciais especiais para fazer o elo entre Deus e a sociedade, ele não está se apropriando arbitrariamente de um direito divino, ele está se assegurando de que não haverá usurpação laica diante da sociedade.

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* Luís A. W. Salvi é autor polígrafo com cerca de 150 obras, e na última década vem se dedicando especialmente à organização da "Sociologia do Novo Mundo" voltada para a construção sócio-cultural das Américas.
Editorial Agartha: www.agartha.com.br
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Fones (51) 9861-5178 e (62) 9776-8957

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