A invenção da Esquerda (uma ode à Dialética)


"Estates general", Isidore-Stanislaus Helman e Charles Monnet
Os espectros políticos que deram origem aos termos “direita” e “esquerda” sofreram várias mutações já na época da Revolução Francesa, até serem descaracterizados e homogeneizados nas  repúblicas burguesas e logo desaparecer através das ditadurasOriginalmente, porém, definiam os militantes da monarquia e da república no Parlamento francês.
Falamos aqui de “invenção da Esquerda”, porque foi a oposição burguesa à uma política tradicional (monarco-aristocrática) que se sentou à esquerda então no Parlamento. A chamada “Direita” reinava já de longa data e suas tradições eram praticamente imemoriais, pese haver distorções comuns às coisas humanas –salvaguardando que estas tradições também estavam comumente eivadas por ideologias suprahumanas.

Com isto, fica claro que não foram exatamente os “representes do povo” que estavam sentados inicialmente à esquerda, mas sim porta-vozes da potente burguesia emergente que criaram este espaço político. As Repúblicas da Grécia e sobretudo a de Roma eram aristocráticas e não tinham partidos, até hoje a única classe que se interessou pelo partidarismo foi a burguesia moderna.
Quem realmente colocou a política tradicional à “direita” foi a própria burguesia, quando adquiriu poder para ingressar no Parlamento. De outra parte, sabe-se que a monarquia teve bem menos pecados do que os revolucionários pretendiam ver, insuflados estes quiçá por interesses golpistas injustificáveis.
Mais tarde, já sem o domínio das monarquias, e havendo as revoluções burguesas frustrado as expectativas dos menos abastados (como seria de esperar), estas posições antagônicas no Parlamento passaram a ser ocupadas por partidários da Alta burguesia (Girondinos) e por partidários da Baixa burguesia (Jacobinos). Ainda não havia a direta representação popular, como jamais houve nas repúblicas burguesas antes das revoluções socialistas. Ademais, na prática jamais o socialismo alcançou o poder através da democracia, e se alcançou ali não se manteve.
Algumas Monarquias puderam permanecer em cena nos regimes capitalistas, despojadas e por força de tradição, visando exercer certo Poder Moderador e simbólico. Já nos regimes socialistas isto não pode acontecer. A industrialização e a exploração do trabalhador produziu uma nova onda de revoluções populares, nas quais já sequer se admitem Parlamentos livres -ainda que tampouco se possa dizer que no cerne do universo capitalista haja espaço para partidos comunistas. Quando um partido socialista alcança o poder pelas armas, o destino da oposição é se calar, ser morta ou migrar -ou então tentar militar clandestinamente.
Tal como a Monarquia foi de início afastada ou neutralizada, direita burguesa e esquerda proletária também contruíram universos próprios onde mesmo os moderados devem integrar estas mesmas ideologias básicas. O extremo oposto, na pratica, não terá voz nem vez. Assim, direita e esquerda foi e sempre será algo muito restrito e relativo. Vemos daí que quando um partido radical de oposição chega ao poder em países periféricos (já que nas metrópoles não existe nenhuma chance disto acontecer), golpes de estado patrocinados pelas metrópoles são acionados para remover aquela cultura política ali desenvolvida, através de ditaduras tão longa e cruéis quanto se julgar necessário.
Assim, a república tende a ser uma imposição histórica da burguesia que parte da premissa política de “dividir para reinar”. Na prática ela não aceita transformações profundas, quer apenas evitar a rebeldia e estimular o consumismo; os “socialistas científicos” por sua vez vão direto ao ponto não tolerando a própria democracia. A contradição do termo “Partido único” é um sofisma para implantar a ditadura.

Isto basta para entender a evolução destes conceitos até os nossos tempos, onde eles apresentam sentido cada vez mais vago e incerto, sobretudo após a Guerra Fria quando a grande base esquerdista do mundo sucumbiu por causa de seus próprios problemas, e as esquerdas passaram a se esvaziar ideologicamente dando cada vez mais margem para o populismo e a demagogia, sob a Derrocada da União Soviética e do imperialismo proletário no Ocidente.
O chocante pragmatismo político demonstrado pela ascensão da Esquerda ao poder no Brasil (através do Partido dos Trabalhadores), dando as mãos ao mais crassos fisiologismos e populismos –e levando de quebra a Direita tradicional a levantar bandeiras esquerdistas visando resgatar a sua popularidade (outra crassa demagogia, obviamente)-, confirma com todas as letras uma moderna teoria social de pendores anarquistas sobre a natureza das posições políticas: “Direita” são partidos que estão no poder nutrindo-se de subornos e corrupção, e “Esquerda” são partidos que estão na oposição atuando junto aos movimentos sociais. 
Ponto para os Anarquistas. Contudo, esta premissa é válida especialmente na conjuntura sociológica da “luta-de-classes” ou sob o binômio exploração-revolução, uma vez que a eventualidade de autênticos governos socializantes (mesmo alguns nacionalistas) as coisas não são tão “simples”. Não obstante, os grandes dias do Nacionalismo parecem ter ficado atrás, a oposição ou “Esquerda” hoje ainda ensaia as suas novas frentes, não raro voláteis ou ilusórias...
As complexidades na avaliação do espectro político moderno traduzem seja o seu caráter artificial como as transformações históricas a que tem estado sujeito. Talvez muito se reduza mesmo às circunstâncias. Como disse Eduardo Galeano, “o poder é como o violino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita” –e nisto há espaço demais para a demagogia. “Na França, onde os termos se originaram, a esquerda tem sido chamada de ‘o partido do movimento’ e a direita de ‘o partido da ordem’.”* Isto significa também estar fora ou dentro do poder. Contudo, a palavra “ordem” soa mais legítima quando se relaciona às ideologias idealistas. Por isto cabe esta citação capital de Jesus com ampla aplicação social:
“Todo o reino, dividido contra si mesmo, será assolado; e a casa, dividida contra si mesma, cairá.” (Lc 11:17)

Mutatis mundi

Mas não é apenas isto. O mundo tem mudado muito desde a Revolução Francesa. As Ciências que alimentaram os ideais positivistas (de onde advém o próprio marxismo) já pouco reinam ou não mais governam sozinhas. As incertezas é que tem muito mais domínio sobre a Ciência atual, ainda que estas coisas talvez não ajudem muito a indústria e o consumismo...
O advento da sofisticação científica que tem dado origem a saberes sutis e abstratos, como o relativismo e a física quântica, ou a psicologia e o estruturalismo -conduzindo tudo isto cada vez mais para os estudos da transversalidade-, nos levam a relativizar dramaticamente antigas posições.
Podemos entender perfeitamente que, afirmar que Deus não existe pode significar apenas negar uma certa concepção de Deus, e sendo Deus algo complexo é natural que haja linguagens simbólicas para as pessoas em geral. Ademais, sabemos que mesmo no passado a espiritualidade pode se desenvolver sem teísmos, como sucedeu ao Budismo. Questionar Deus não é o mesmo que questionar o espírito, como certas doutrinas –de boa ou má fé- tem insistido fazer.


A Ciência mesma tem se auto-questionado sobre inúmeros pontos, e reconhece ademais não possuir as respostas para muitas das coisas mais importantes. Com tudo isto já não podemos usar a Ciência para defender posições radicais.
Este quadro pode nos levar de volta a certo transcendentalismo, para além dos medianismos também presentes. No campo teológico existem referências interessantes, remetendo para aquilo que existe para além destas divisões:
“Quer andeis à direita quer à esquerda, teus ouvidos ouvirão uma palavra atrás de ti, ‘-Este é o caminho, segui-o’.” (Is 30:21)*
Assim, os campos ideológicos “do centro” ou mesmo “de cima” começam pouco a pouco a se recompor.A dialética avança sobre a dicotomia primária de tese-antítese para permitir vislumbrar novas sínteses.

Ora, não é muito difícil imaginar que o Antigo Regime estava bastante carcomido já quando sucumbiu para as forças da burguesia. A aristocracia feudal estava cada vez mais distante das coroas, literalmente encasteladas.
As Cruzadas haviam dado muita força e poder para a nobreza, que passou a incentivar e adotar o comércio e a se desinteressar das guerras religiosas que a Igreja queria promover. Aquele mundo fechado medieval deixou de existir no contato regular com outros universos pujantes de novos ofícios e conhecimentos.  
Ou seja, a própria aristocracia foi tomando cada vez mais uma forma de burguesia. A poderosa Ordem dos Templários estava no coração deste tempo, e deu origem aos sistemas bancários e às letras de câmbio durante as guerras. E depois que a Ordem foi extinta sob a cobiça de reis e papas para extorquir a sua riqueza, os antigos cavaleiros se refugiaram nos países ibéricos para mais tarde dar início às navegações ultramarinas e às Conquistas.**
As cidades cresceram e atraíram os servos feudais que se reuniam à burguesia emergente, e a presença da moeda debilitou a economia feudal. As coroas passaram a cobrar impostos e se tornar independentes da vassalagem feudal.
Por fim, o imperialismo renascentista mostrou as coroas de mãos dadas com a burguesia, voltadas para o crescente tráfico mercantilista e, logo, através da revolução industrial fortalecendo anda mais a economia das cidades. Este pacto espúrio não poderia perdurar, bastando simples pretextos para as coroas tombar sem mais tardança. A burguesia queria o poder total e ilimitado, buscava dominar o mundo! Neste contexto emerge o capitalismo, que dará lugar ao socialismo, e que nos trazem ao caos atual.


Os ciclos sociais

Falamos assim de sucessivas transformações sociais através de Cruzadas, Conquistas, Revoluções e Derrocadas. O mundo tem mudado na verdade desde antes do presente, através de sucessivas desconstruções sociais. O universo acadêmico tem assinalado que estas transformações seguem ciclos de 200 anos (trata-se de um “calendário” muito conhecido dos Antigos e até dos Medievais).

A dicotomia original idealismo-realismo foi apenas a primeira grande dialética, dentro delas estavam embutidas dialéticas menores, e o poder da dualidade clero-aristocracia foi substituída pelo poder da dualidade burguesia-proletariado, inclusive em muitas das suas funções, o que pode dar uma ideia do reducionismo praticado...
Abaixo resumimos este quadro de mudanças sócio-culturais, havendo de considerar os relativismos cabíveis que na sequencia passamos a comentar.

1ª Revolução Cultural. “A Queda da Clerocracia”. Causa: as Cruzadas, imperialismo religioso.
2ª Revolução Cultural. “A Queda da Oligarquia”. Causa: as Conquistas, imperialismo monarquista.
3ª Revolução Cultural. “A Queda da Plutocracia”. Causa: Globalização, imperialismo burguês.
4ª Revolução Cultural. “A Queda do Socialismo”. Causa: Tiranização, imperialismo proletário.

Tratamos assim de movimentações gerais que transformaram a economia planetária, sem que as classes jamais tenham sido de todo extirpadas. Mesmo sob a direta influência das ideologias mais radicais, como foi o marxismo com seus incontáveis mortos e assassínios covardes de famílias de czares, muito dos sistemas anteriores permanecem ali e sobretudo em outras partes do mundo.
A grande cisão se dá entre os regimes idealistas (teocracia e monarquia) e os regimes materialistas (república e ditadura), cuja convivência sempre foi muito mais desafiadora. Contudo a harmonia social ainda é uma possibilidade. Houve momentos da humanidade em que havia grande integridade na cultura e livre expressão das classes sociais. Se conhece hoje este sistema social como Sinarquia, o “governo conjunto”, onde as classes sociais interagem harmoniosamente. É possível que o mundo esteja rumando para isto, especialmente na Eurásia agora que as quatro etapas sociais manifestaram as suas revoluções e suas quedas, e mais lentamente nas Américas porém de uma forma realmente esplêndida e universalista, conquanto os esforços necessários sigam sendo realizados pelo bem maior de todos
O Novo Mundo –as Américas-, está parcialmente atrelado ao Velho Mundo, de forma ativa (norteamérica) ou passiva (sulamérica). Aqui os ciclos sociais também “funcionam”, e nem sempre totalmente “a reboque” do Velho Mundo. Os importantes processos sociais do Novo Mundo têm influenciado deveras a Europa auxiliando a forjar parte das suas ideologias, certamente mais Rousseau e Voltaire do que Marx e Engels. No novo continente os ciclos sociais se invertem em função de se tratar de um processo construtivo - nem haveria o que “desconstruir” ali, daí a impertinência de ideologias “liberais” e revolucionárias: a unidade e a evolução é aquilo que se requer.

Uma das formas mais interessante de observar estes movimentos locais ocorre no Brasil, quando os regimes sociais emergentes decidem trocar a Capital Federal de região visando consolidar as suas conquistas culturais e alavancar novos processos econômicos. E se podemos notar influências externas, as iniciativas internas também são decisivas no curso das coisas. Por isto, os regimes sociais não possuem os mesmos conteúdos em ambos os hemisférios, tal como raramente coincidem no espaço-tempo.

Se o Nacionalismo teve ampla influência da burguesia internacional para erradicar o colonialismo em toda parte (colocando assim as bases do neo-colonialismo), houve também fortes iniciativas de novas aristocracias nativas, por assim dizer, nos palcos latino-americanos, buscando inclusive implementar as reformas sociais. Por esta razão é que surgiram em seguida os golpes neocolonialistas para tentar erradicar estes movimentos espontâneos de libertação com vocação social. Simon Bolívar, um libertador paradigmático da região, era homem de posses e um idealista, frequentou as cortes europeias e lutou pela libertação de países sul-americanos. Depois tentou aprofundar as mudanças sociais, e foi quando as oligarquias nativas (pactuadas com o capital internacional) deram sumiço nele. O mesmo aconteceu com a linhagem de Getúlio Vargas no Brasil, traída duas vezes: inicialmente pelos “militares” e depois pelas “novas esquerdas”. A traição não desmerece porém as intenções destes nobres libertadores. 


Sabemos que o Nacionalismo também pode ser associado ao Socialismo Aristocrático que, em última análise forja as monarquias tribais e civilizadas. O mesmo vale para as fórmulas do “Socialismo Utópico”, no dizer dos marxistas, capaz de atuar topicamente através da cultura e da sociedade (embora os falanstérios sejam tão criticados pelos “socialistas históricos”, Engels reconheceu que o falanstério de Godin –um escritor e empresário idealista- funcionou, após haver durado cerca de cem anos). 
Estas são aproximações sutis de ideologias equilibradas, que buscam contornar a exploração social e a luta-de-classes. O próprio Nacionalismo é capaz de prevenir a luta-de-classes pelo "simples" expediente de evitar a pobreza do país, onde as lutas eventuais se voltam antes contra o imperialismo, mas cujos esforços a divisão “democrática” da nação também pode debilitar. Ainda assim, é sob o Nacionalismo que as ideologias melhor alcançam definir os seus espectros cromáticos. A recíproca porém não é verdadeira, porque os regimes capitalistas e materialistas são amplamente imperialistas, sobretudo o capitalismo.
“Democracia” é uma palavra que para filósofos antigos costumava ser associada a demagogia, eles sabiam que todo sistema social requer as suas condições apropriadas. Os sábios e os guerreiros tratam de aprimorar a si mesmos, para depois auxiliar a sociedade na conscientização de si, do outro, do mundo e de Deus. E isto induz aos regimes idealistas de ordem, onde a qualidade é mais valorizada do que a quantidade - mas nada disto implica em podar o livre-arbítrio alheio e nem em praticar a discriminação social, racial, sexual ou religiosa. Para funcionar bem, a grande Fórmula da sociedade íntegra é a implementação dos “laboratórios sociais” em qualquer escala, com respeito mútuo, reconhecimentos dos méritos, esforço nos acordos e ênfase absoluta na educação.
Pois na verdade o caminho é nem tanto e nem tão pouco, entre o local e o geral, a empresa e a civilização: algo se perdeu nestas procuras extremadas, que poderia ser achado melhor através do ambiente cultural da cidade. Por qualquer razão, os socialistas não foram capazes de vislumbrar a evolução através da cultura, talvez por estarem obcecados pela questão econômica. O pouco que se fez foi através de pequenas iniciativas isoladas, sem maior impacto social ou econômico. Já o capitalismo investiu de forma até exagerada nas cidades, apenas para explorar os campos e criar consumidores neuróticos e serviçais pobres. Isto inclui porém um sacrifício da cultura, cuja qualificação sempre é alcançada através do contato com a Natureza.


A criação de cidades novas, com equilíbrio entre o isolamento e a integração, e entre a militância e a organização, tem sido a forma tradicional de renovação das culturas e das civilizações. O mito da Cidade fundadora prevalece há milênios e prossegue nas profecias, seja como Cidade-estado ou como Centro cultural; para além da antiga ideia de templo limitada à renovação religiosa: o mundo atual está regido pela ideia da Civilização, onde as instituições podem ser instrumentos para a evolução da consciência, e não apenas para o usufruto pessoal.

** Tradução compatível com A Bíblia de Jerusalém. Existe uma versão distinta e provavelmente menos confiável: “E os teus ouvidos ouvirão a palavra do que está por detrás de ti, dizendo: Este é o caminho, andai nele, sem vos desviardes nem para a direita nem para a esquerda.” 
*** À primeira vista os cavaleiros estavam a serviço das coroas, porém estas coroas também estavam sujeitas a novas ideologias espirituais (como o espiritualismo aristocrático franciscano e do Império do Divino) não exatamente alinhadas com a Igreja, ainda que muito mais do que outros países cristãos que estavam se tornando protestantes.


* Luís A. W. Salvi é autor polígrafo com cerca de 150 obras, e na última década vem se dedicando especialmente à organização da "Sociologia do Novo Mundo" voltada para a construção sócio-cultural das Américas.
Editorial Agartha: www.agartha.com.br
Contatos: webersalvi@yahoo.com.br 
Fones (51) 9861-5178 e (62) 9776-8957

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