O Anarco-Fundamentalismo e a superação do dogma ideológico



Fundamentalismo é o apego literal e acrítico às raízes doutrinais de um credo ou ideologia, sem maior capacidade de adaptação, interpretação ou flexibilização. Embora se costume hoje atribuir o tema à religião, sabidamente ele se estende a toda forma de doutrina.
O que seria, neste caso, um comportamento oposto ao fundamentalismo? Citemos:


“Ao contrário do que se imagina, o anti-fundamentalismo não seria exatamente o liberalismo, e sim o modernismo. Ora, mesmo na espiritualidade se reconhece a necessidade da atualização das doutrinas, sem o que sequer seria possível vivenciar bem ideias que se originam necessariamente num dado contexto histórico. A maior prova disto seria, talvez, a própria doutrina hindu sobre o advento cíclico dos avatares.” (“Do fundamentalismo e outros desvios”, Salvi).

Ora, se até mesmo as religiões, que seriam fundadas por figuras supostamente divinas detentoras de grande poder de síntese, recebem adaptações cíclicas e geográficas em várias escalas, que dizer de doutrinas elaboradas por filósofos de menor alcance e capacidade? É mais do que óbvio e ululante que estas visões-de-mundo necessitam ser sistematicamente adaptadas e também completadas com o passar dos tempos.


O comportamento “conservador” leva basicamente a tentar repetir modelos empregados na época da criação da doutrina –e cabe levar em conta que nisto se incluem também as doutrinas reformadas já em desuso ou naturalmente desviadas. Os desvios são comuns nas atitudes do leigo ou do falso-filósofo.
Como se manifesta, pois, o fundamentalismo anárquico? Ora, em função desta cegueira histórica, o fundamentalismo leva a atitudes radicais e extemporâneas. E como o anarquismo costuma ter muito mais a ver com o deixar-de-fazer-coisas (a própria palavra “anarquia” é em si uma negação de algo) do que com empreendimentos, então uma das formas mais notórias de expressão anarco-fundamentalista é, justamente, o nada-fazer...
Face as dificuldades de ter atitudes objetivas, o anarco-fundamentalista tem se convertido quase num simples “moralismo social”. Citemos:


“O antropólogo anarquista David Graeber distinguiu as duas filosofias da seguinte forma: 1. O Marxismo tornou-se um discurso teórico ou analítico sobre a estratégia revolucionária. 2. O Anarquismo tornou-se um discurso ético sobre a prática revolucionária” (“Do fundamentalismo e outros desvios”, Salvi).

Neste caso, estendemos o juízo-de-valores anarquista –e apesar do “libertarismo” comum nos anarquismos- para além da “prática revolucionária”, na medida em que o anarquista permanece quase meramente ao nível da crítica-de-costumes. E com isto ele se torna um expectante contumaz embora inconfesso, sobre um futuro hipotético quando as pessoas finalmente enxergarão as verdades iluminadas que ele hoje já percebe... Ou, como dizer de Maiakovski, “para o júbilo o planeta está imaturo”. Não é curioso que justamente os anarquistas, tão prezadores da liberdade, se achem tão apegados à fórmulas históricas? Isto se deve justamente à certa cristalização das ideias ainda no plano da teoria.
Neste sentido, não é somente a religião que pode ser um ópio –aliás, nem mesmo Mao Tsé Tung (ou qualquer outro socialista ou comunista) poderia dizer isto da religião se tivesse em mente as atitudes de um São Francisco de Assis! Neste aspecto, o anarquismo expectante acaba se tornando muito parecido às próprias religiões, justificando o trato que o “Manifesto Comunista” faz do tema como “seita”:
“(....) se, em muitos aspectos, os fundadores desses sistemas eram revolucionários, as seitas formadas por seus discípulos são sempre reacionárias, pois se aferram às velhas concepções de seus mestres apesar do ulterior desenvolvimento histórico...”
Naturalmente Marx puxava a sardinha para o seu assado, de todo modo o texto acima pinçado é válido. Os sonhos dogmáticos e os métodos estreitos dos anarquistas estão sempre tão longe da realidade atual, que ele praticamente desiste de atuar no mundo presente –como se a inação pudesse ajudar a construir qualquer futuro melhor!

Umas das tantas dificuldades está em que o anarquista não consegue unir-se como “classe”. Por sua própria natureza, o anarquismo é uma filosofia que supera qualquer outra em número de correntes, e estas não têm a vocação de “classe”. Não obstante, muitas correntes aderem a ideologias afins, vendo nisto um movimento em direção ao seu próprio ideal. Historicamente, contudo, isto tem sido bastante complicado, porque as outras ideologias nunca são totalmente contra o Estado, e as mais próximas disto são afins ao Capitalismo.
Muitos anarquistas lutaram contra os marxistas na Revolução de 1917, mas quem pode garantir hoje que a doutrina marxista do pós-socialismo (ou comunismo-sem-Estado) não representasse também uma forma de dividir os anarquistas para cooptar as simpatias de alguns? Nós também defendemos a mudança “por etapas”, porém há que ver o tamanho das contradições (se existem), pois há “formas e formas” de fazer isto. Usar as armas do velho sempre é coisa bastante controversa.


É enfim uma posição árdua de permanecer, esta espécie de esquizofrenia filosófica soa até perigosa para a mente. E diante das impossibilidades reais ou aparentes de colocar em prática tão nobres ideais, o anarco-fundamentalista se entrega a “atalhos” para viver ao menos subjetivamente o seu paraíso perdido, sem jamais suspeitar a enorme contradição também nisto existente, até mesmo para aqueles que se declaram “individualistas”. Pois neste ponto ele perde totalmente os seus referenciais criativos e conscienciais, porque anula facilmente os próprios sintomas de dor.
Ostentar uma ideologia nunca foi sinal de engajamento positivo, há muita ideologia que é alienação e até acomodação, como são as doutrinas conservadoras e aquelas “alienígenas” estranhas às nossas bases culturais, como é o materialismo histórico em relação às Américas. E há naturalmente aquelas ideologias radicais que são tão impraticáveis que apenas podem nos deixar na nossa própria zona-de-conforto...


Por fim, surge a acomodação subjetiva, que é a rendição ao próprio ego, apenas para escapar às supostas vilanias do ego alheio reunidas rótulo grandiloqüente da fobia-à-“autoridade”. Esta falácia se denuncia diante do fato das filosofias anarquistas não buscarem algo como a purificação do “ego” para aprimorar as relações sociais, sequer na esfera da psicanálise, ainda que mais facilmente e com maior eficácia se poderia encontrar nas doutrinas espirituais ou religiosas disseminadas os mesmos objetivos.

A opção pelo palco da História

Ora, uma das poucas coisas que possibilita o avanço de uma doutrina é a sua colocação na prática, mas se os seus adeptos permanecem acomodados esta possibilidade também se aniquila! Nós não estamos preocupados com este ou aquele anarquista, estamos preocupados com o mundo e com a alienação dos homens. Afinal, o que poderia interessar mais ao sistema do que ver oposicionistas esterilizados pelas suas próprias ideias malformadas?!? Por ser uma doutrina assim tão especial e diferente é que o anarquismo resvala em radicalismos e perde o pé dos fatos, sucumbindo em subjetivismos especulativos e divergentes.


Uma das grandes tarefas que toca ao anarquista é deixar de querer “reinventar a roda”. É buscar na História (ou até mesmo na pré-História, se for o caso) referências para aquilo que ele aspira, e tratar então de adaptar e aplicar as coisas aos tempos presentes. Pois se ele tem a pretensão de achar que aquilo que ele busca é totalmente novo, que sequer em alguma escala tal coisa jamais existiu na humanidade, então realmente ele se torna um cativo da utopia.

O auto-engano –classicamente chamado de astúcias-do-ego”-, é uma chaga antiga da humanidade, estando representada já na sedução do Diabo ao tentar Eva a cometer o Pecado Original. O verdadeiro Mal está no coração dos seres humanos, nunca fora dele, pois este Mal é que impede as pessoas de tomar as medidas corretas –preventivas ou saneadoras- contra os males que existem no mundo. Os princípios libertários do anarquismo podem ser por si confusos, pois faltaria uma discussão mais profunda sobre as bases da liberdade. À luz das teorias dos condicionamentos de Pavlov e Skinner, para alguém condicionado ser livre é poder responder aos estímulos que o condicionam. O anarquista pode até afirmar que luta contra tudo isto, supõe-se que ele quer o descondicionamento –sempre e quando consiga realmente identificar o seria ou não seja condicionado!


Mas mesmo nisto pode residir um problema sutil. Ocorre que, aquele que luta frontalmente contra algo também está condicionado por isto: ele poderá estar se privando de uma experiência de equilíbrio! Este é verdade um grande mal do anarquismo –uma doutrina que, como vimos, é negacionista por definição. O anarquismo está praticamente estruturado sobre o princípio da antítese filosófica (ou do conflito e da oposição), da mesma forma que o marxismo, ainda que por outras razões.
Com isto o anarquismo não chega a alcançar uma nova posição filosófica, como seria a da síntese dialética tão almejada. Por isto, mesmo que o anarquismo seja algo negacionista, ele deve se adaptar aos tempos e avançar para as sínteses, mantendo as suas bases anárquicas porém considerando o relativismo e o progresso das coisas, sempre atento para as contradições.


Uma grande solução seria investir em modelos paralelos ou alternativos, como forma de criar propostas reais de vida libertária, seja em pontos mais focais ou até através de anti-sistemas completos como seria a criação de comunas e zonas autônomas livres de opressão social e cultural. Como propôs Fourier através dos falanstérios rururbanos ou através de propostas ainda mais amplas e inovadoras que tem sido realizadas através dos tempos, pelas quais se pode finalmente estabelecer os direitos naturais e universais do homem.

Afinal, o que leva os anarquistas a recusar busca propostas autonomistas, uma vez que a liberdade é a sua meta e as perspectivas de tomada do estado está fora dos seus caminhos? Não há como compreender isto, fora da alienação e do comodismo.
Ademais, o mundo hoje gira cada vez mais rápido, e velhas certezas têm sido abaladas. Se os grandes filósofos anarquistas tivessem nascido hoje, eles certamente reformulariam suas visões sob “inúmeros” aspectos. Ao menos devemos acatar em paralelo relativismos e incertezas, porque isto também faz parte da evolução da Ciência, tal como o Positivismo ajudou a edificar as primeiras teorias do anarquismo. Tal coisa abre naturalmente espaço para o livre-arbítrio e para a diversidade cultural –em decorrência também a social.

Assim, a inação ou a sub-ação do anarco-fundamentalista em nada ajuda a criar aquele “mundo futuro” no qual os anarquistas tão facilmente projetam as suas utopias. E uma das grandes amarras anarquistas está na fixação ao dogma e à teoria, assim como a sujeição a visões superficiais e alienadas de “liberdade”.
Neste caso, e para reportar-nos ao óbvio, o anarquista sério deveria atentar para aquilo que propõe os filósofos modernos, e ter os clássicos apenas como base e referência histórica, uma vez que é o tempo presente que atualiza as informações e adapta as propostas.


* Luís A. W. Salvi é autor polígrafo com cerca de 150 obras, e na última década vem se dedicando especialmente à organização da "Sociologia do Novo Mundo" voltada para a construção sócio-cultural das Américas.
Editorial Agartha: www.agartha.com.br
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