A cultura sempre deve caminhar ao lado da
sociedade para lhe oferecer esteios sólidos e seguros. A cultura do espírito é
parte essencial da evolução social, e esta subordinação não pode se dar ao luxo de ser invertida (como acontece hoje na Europa) sem que antes a própria cultura esteja bem sedimentada, sob pena de jamais termos
uma sociedade soberana e realmente organizada.
Uma característica profunda dos índios
amazônicos era a sua repulsa pelo trabalho na terra –falamos dos homens
naturalmente, já que às mulheres era dado realizar esta tarefa-, preservando
assim seja os primitivos valores do paleolítico, como também uma aristocracia
guerreira que não distava daquilo que existiu em várias outras partes do mundo.
O “tabu” contra o trabalho agrícola –quiçá um
primitivo dogma naturalista-, era inculcado na mente dos jovens indígenas e
nada mais lhes fazia mudar de ideia. A privação do trabalho masculino não permitiria
a transformação do meio ambiente pela proliferação da agricultura. Neste
sentido, diferiam mais das sociedades circundantes ditas “civilizadas” dos
Andes e de Meso-América, aproximando-se porém dos indígenas norte-americanos. Também por isto, e ao contrário das culturas civilizadas,
a sociedade silvícola e tribal se manteve estável e praticamente inalterada através dos milênios...
Os índios cedo compreenderam que a manutenção
do seu modus vivendi dependia da
condição guerreira. No Paleolítico a luta pela vida era cotidiana, a disputa
por espaços vitais era acirrada e se estendia aos animais. Avançaram para o
Neolítico quando assimilaram alguns rudimentos agrícolas domesticando muitas
plantas, mas nunca domesticaram realmente animais, com os quais mantinham antes
uma relação mágica ou religiosa, apesar de caçarem várias espécies para
diferentes finalidades.
Pode ser avaliada a presença ocasional da
monarquia primitiva nas sociedades indígenas: “(o) tuxaua (é um) chefe
guerreiro, cargo a que tinha direitos hereditários” (Darcy Ribeiro, sobre os
bororos que ilustram o seu romance “Maíra”), e tanto mais nas tribos africanas
e entre os povos bárbaros da Europa que depois foram cristianizados. Este
regime avançou nos Andes e na Meso-América, e entre os Incas se verificou certo
“socialismo aristocrático”.
Nas reduzidas tribos indígenas -mantidas pequenas
sobretudo para efeitos de sustentabilidade-, este regime jamais pesou e seu
funcionamento foi aprovado pelo tempo, vindo a sucumbir apenas diante da
invasão de todo um outro Continente...
Quando os europeus chegaram às Américas,
tiveram que importar africanos mais “civilizados” com hábitos agrícolas para realizar
os trabalhos forçados nas plantações coloniais. A única verdadeira
aliança que conseguiram ter com os nativos foi de ordem militar.
Havia porém um grande povo com uma cultura
especial, o Guarani, mais dado à agricultura além de manter crenças expectantes
que lembravam as cristãs, quiçá inspiradas no universo andino com o qual
mantinham contato regular, ou até mesmo pelas remotas culturas meso-mericanas originalmente. Disseminados por boa parte da América do Sul, com os
Guaranis os padres conseguiram organizar sociedades novas, as famosas e
produtivas reduções jesuíticas com milhares de índios cada, que chegaram a inspirar
utopias sociais na Europa, especialmente através da pena de Voltaire.
Para conseguir isto, os padres tiveram que
afastar a poderosa influência espiritual dos pajés, mas preservaram os caciques
tribais, mantendo compromissos com a coroa hispânica especialmente de serviços
militares. Estas reduções eram alvos frequentes dos Bandeirantes paulistas em
busca de mão-de-obra escrava -uma vez que os índios assim domesticados se
tornavam muito úteis ao colonizador-, ademais de debilitar as forças hispânicas
e permitir o avanço luso-brasileiro sertões adentro.
A cultura indígena também se fortaleceu com o
incremento da economia local pela introdução do gado. Os Guaranis aprenderam a
tratar dos vacuns, mas as tribos nômades dos campos –Pampas, Charruas,
Minuanos- passaram a usar os cavalos com grande habilidade. Na região do
Pantanal (Gran Chaco) os “irredutíveis” Guaicurus se tornaram uma potência
local, oferecendo grande resistência à colonização na região. Após conseguirem
um tratado de paz, se tornaram colaboradores da coroa portuguesa inclusive no
“negócio” escravagista.
As mudanças da sociedade europeia não reduziram
porém o abismo cultural com o mundo ameríndio, antes pelo contrário, uma vez
que a Europa caminhou para o Capitalismo, impulsionando consigo a cultura
colonial e mestiça.
Apropriando-se do discurso iluminista de se pretender porta-voz da cultura e da civilização, a alta burguesia
colonialista tenta generalizar as coisas dizendo de forma hipócrita e oportunista
que o espírito aristocrático é universalmente nocivo, quando na realidade a
validade deste discurso sequer ultrapassa as fronteiras da Europa. A verdadeira
questão está na oposição eficaz que a aristocracia, como detentora da cultura e
da consciência nacional, pode fazer e faz contra as pretensões predatórias do
colonialismo.
Nem mesmo o socialismo de matriz européia soube respeitar
realmente o indígena, tratando o nativo como um elemento a ser incorporado à
modernidade, ainda que custosamente se possa alimentar a esperança de
transformá-lo em lavrador ou proletário. Esta representa porém uma distopia nociva e teórica que não se aplica ao novo Mundo em função da formação natural das nações. O resultado disto é uma alienação ideológica
gritante, onde o opressor capitalista inclusive usa a utopia marxista para
dividir e confundir o povo mais necessitado.
Daí o convívio difícil que a cultura
europeizante mantém com os nossos índios, ainda que o fomento da cultura
nacionalista local tenha tratado de resgatar a sua importância e identidade,
dada inclusive certa aproximação “ideológica”, por assim dizer.
A saga de Canudos |
Uma verdadeira “Política da Libertação” de fundo cultural é
que deve então ter lugar, ao invés da “luta de classes” alienada e de metas
meramente econômicas, mesmo porque um país forte e protegido não necessita de
conflitos internos. A ideia incipiente das classes –incipiente porque as
próprias classes se acham todavia ainda em formação no Novo Mundo- deve dar
lugar à da cultura, especialmente aquela de matiz popular, com suas devidas
forças evolucionárias (evitamos
o termo “revolucionário”, próprio dos processos europeus de descontrução
sócio-cultural). Citemos um importante autor da Filosofia da Libertação, o filósofo
argentino Enrique Dussel:
“Contra o dogmatismo abstrato de esquerda –que levanta exclusivamente a cultura proletária inexistente em muitos países latino-americanos- se deverá opor a cultura popular revolucionária (conceito e categoria muito mais concretos e reais na América Latina).” (Dussel, “Filosofia de la Cultura y la Liberación”, pg 257, Universidad Autonoma de la Ciudad del México 2006)*
Para a ótica materialista e revolucionária europeia nada disto soa
bem, uma vez que o Velho Mundo sofreu um curso histórico oposto. Com isto
existem várias tendências ideológicas europeias que gostariam de ver as coisas
mais “estacionadas” no Novo Mundo, sem “arroubos” de independência real, cultural e
econômica. O gesto mais dramático realizado nos tempos pelas potências opressoras foram as
Ditaduras Miliares impostas sobre a América Latina no Século XX, visando “podar
as asas” destas nações emergentes. Porem tal coisa não foi uma iniciativa unilateral
do capitalismo, pois na esfera sujeita ao socialismo aconteceu coisa semelhante
e sem melhores resultados.“Contra o dogmatismo abstrato de esquerda –que levanta exclusivamente a cultura proletária inexistente em muitos países latino-americanos- se deverá opor a cultura popular revolucionária (conceito e categoria muito mais concretos e reais na América Latina).” (Dussel, “Filosofia de la Cultura y la Liberación”, pg 257, Universidad Autonoma de la Ciudad del México 2006)*
Contudo o destino do Novo Mundo deve vingar.
Nações são como criaturas com vida própria e ciclos a cumprir. O ciclo
nacionalista sofreu um duro golpe mas ele deve ressurgir e se renovar,
incorporando os ideais necessários ao Bem Comum; como já volta a acontecer a
olhos vistos aliás em alguns países da América do Sul, inclusive sob o amparo direto das sociedades nativas
que fornecem afinal alguns dos tantos elementos históricos e sociais hoje necessários,
como o ambientalismo e a paz social. O momento atual é de
refinamento, cabe agir com muita perspicácia e objetividade. Quando o inimigo é
poderoso toca fortalecer a retaguarda e apurar a capacidade de reflexão e a independência a todo custo.
Os falanstérios de Charles Fourier
Tal coisa implica pois em fomentar as comunidades intencionais, bases sociais e econômicas
dos novos momentos culturais. Marx e Engels criticaram de forma desajeitada no
seu “Manifesto Comunista” aquilo que chamam de “socialismo utópico”, tal como
conceberam Owens e Fourier através de suas comunas intencionais. Não obstante,
estas não são exatamente ideias e práticas novas (donde não poderem ser taxadas de utópicas!),
muito pelo contrário, integram uma ampla tradição cultural humana, cabendo
apenas encontrar o seu verdadeiro curso histórico e a decorrente profissionalização.
Sob as pressões da Guerra Fria, a juventude deu passos nesta direção, buscando
organizar comunidades alternativas pese sua inexperiência e falta de orientação
e de apoio.
As comunidades indígenas têm muito a ensinar
nesta fase, ainda que caiba organizar comunas mais amplas e numerosas tendo em
vista os contingentes humanos modernos, ou seja, cidades novas e
sustentáveis, com culturas autônomas e independentes, onde altivamente as
sociedades decidam viver sem a corrupção do mundo exterior. Com isto
o nosso indigenismo tão perseguido pode oferecer um decisivo norte nesta desafiadora hora
da nação, quando a consciência social do país se acha tão afastada de sua própria
natureza, e para além do romantismo burguês alienado da realidade sociocultural, mas como um modelo e referência
real de existência, onde as coisas podem ser perfeitamente adaptadas através de
um sincretismo histórico.
Existem inclusive calendários que regulam a
evolução das “estações sociais”, apontando para o momento da consolidação da
aristocracia nacional através do fomento da sociedade filosófica, depois que
tivemos a etapa militarista (“Primeira República”) e a etapa socialista (“Segunda
República”). A “Terceira República” deverá surgir na esteira da organização das
comunidades intencionais inspiradas nas culturas indígenas e na tradição
universal da primazia da cultura.
A revolução social da aristocracia espiritual passa
pela cultura e pelo investimento na qualidade acima da quantidade, ou na consciência
sobre a economia, concentrando-se na formação do próprio ser humano, razão pela
qual elege criteriosamente a criação de laboratórios sociais visando a educação
integral e a formação do caráter (cultura-com-alma, ciência-com-consciência,
etc.). Algumas vezes este propósito se viu reduzido às classes sociais mais
altas, como ocorreu na Idade Média onde a nobreza dividia seus filhos entre a
administração (ou formação militar) e a igreja, não faltando a construção de cidades
especiais para a criação criteriosa destas elites-de-consciência, como ocorreu entre
os Incas através de locais como Macchu Picchu. Porém, em muitos casos também se
priorizou o social pela preservação geral da qualidade-de-vida e de consciência-do-todo
mediante a organização de sociedades tribais reduzidas, sempre com grande ênfase
na cultura e na Natureza, mantidas íntegras sob a orientação dos sacerdotes (pajés,
xamãs, druidas, etc.) contatados com as forças cósmicas.
Tais procedimentos seriam aliás a regra natural
nas nações em construção que fazem a opção pela cultura soberana e a justiça
natural. Mais do que buscar um igualitarismo radical fantasioso, se trata de promover
a justiça natural pela oferta de oportunidades iguais para todos, de modo a
cada um poder desabrochar naquilo que realmente é. O verdadeiro aristocrata não
concede aos homens o direito de determinar o destino de outros homens, visando
antes que “todos os seres humanos possam desabrochar em seus potenciais sob aforça dos elementos naturais e os estímulos da cultura universal”.
* Enrique Dussel é um filósofo argentino radicado (exilado) no México, expoentes da Filosofia
da Libertação e do pensamento latino-americano em geral. Tem se
colocado como crítico da pós-modernidade, chamando por um novo momento denominado transmodernidade e do pensamento eurocêntrico contemporâneo (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Enrique_Dussel).
Ver também
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Anarquismo & Aristocracia - em busca do elo perdido
“Evolução da burguesia – uma solução cultural para a crise planetária”
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(51) 9861-5178 e (62) 9667-9857
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