Anarquismo e aristocracia: em busca do elo perdido



Qual elo existe entre aquilo que ainda não é e o que já foi? A flor faz a ligação entre a folha e o fruto (que contém a semente renovadora). A flor da nobreza de caráter é aquela essência que marca tanto as aspirações mais íntimas dos anarquistas quanto o passado mais elevado dos aristocratas. A sincera busca pela integridade humana é que reúne ambas filosofias.
A nobreza se caracteriza pelo autonomismo no contexto social, mas como esta aspiração pela independência amadurece de forma gradual -sobretudo no plano da cultura-, havendo ademais aqueles que permanecem pessoas simples pela vida toda por simples opção ou capacidade natanaturalmente outras pessoas tendem a gravitar no seu entorno como aprendizes e auxiliares, na certeza de que os progressos na causa do seu líder resultarão em avanços para todos.
Deveria abandoná-los, para que fossem cooptados ou apreendidos por senhores cruéis, demagogos e ignorantes, em nome da destruição geral? Não seria compassivo e nem sábio fazê-lo. Aliás, as doutrinas burguesas falam muito da exploração social no feudalismo, descentralizado e com sua economia-de-subsistência em regiões sem países constituídos; porém na modernidade o povo segue explorado e alienado apesar da imensa geração de riqueza e de capital, e o que é pior de tudo, agora o mundo todo está sendo rapidamente destruído..!
O guerreiro é aquele que assume o desafio de ser ele mesmo um mestre, um instrutor. E para ter sucesso nisto, ele segue e se inspira em algum grande mestre –além de proteger e apoiar os seus colegas religiosos que seguem com ainda mais rigor a busca das verdades últimas. Deste modo, ele se põe como elo entre o céu e a terra, algo muito diferente das superstições dualistas da civilização materialista.
Ela “sabe o que quer” para si e não admite interferências externas –salvo aquelas em que ele identifica os sinais da excelência. Sua essência pessoal é o valor e a consciência crítica, e sua atividade caracteriza-se pelo idealismo e a militância regular. Toda a nobreza se afirma pela consciência do dever, superando os desejos menores separatistas. E no momento em que ela descobre o poder do dever, naturalmente também alcança afirmar o dever do poder, que a princípio é a sua simples autoridade natural e cultivada.

Os Falanstérios de Fourier
De forma semelhante, o anarquista pauta-se pela rebeldia permanente, ainda que nisto ele possa exagerar se perdendo em contradições sob a hybris humana, por estar afastado de maior orientação pessoal. Por isto as melhores propostas anárquicas se aproximam naturalmente dos métodos sociais aristocráticos, que são basicamente tribais e autonomistas –o próprio feudalismo era um regime econônimo e social descentralizado.* Quem há de duvidar, afinal, que os anarquistas fariam muito melhor em investir em algo como o chamado "socialismo utópico" de Owens e Fourier, que em depredar o patrimônio público ou jogar inutilmente bombinhas na polícia? Os falanstérios de Fourier inspiraram o autor contemporâneo de “Bolo’Bolo”, obra sobre comunidades autônomas libertárias (os chamados bolos).
Daí que, quando se pergunta aos anarquistas sobre modelos, eles facilmente fogem do período histórico para citar o anterior ou para imaginar o posterior, confessando nisto quiçá algum sonho vago de atemporalidade... Outros que se enquadrariam na categoria social da nobreza são os militares e os políticos de vocação, assim como os filósofos naturais e os iniciados espirituais.
Os anarquistas formam hoje uma legião de pessoas essencialmente deslocadas da ordem vigente por não acharem espaço para as suas ideias. Em parte as suas utopias são realmente fantasiosas, mas em parte elas apenas são combatidas ideologicamente pelos sistemas dominantes viciados na ideia do poder.
O anarquista deve pois libertar-se e avançar ideologicamente para a filosofia da nobreza clássica, assumindo responsabilidades sobre si mesmo (pelo aperfeiçoamento do caráter, admitindo nisto a importância dos modelos) e depois sobre o meio, orientando politicamente a sociedade na direção da libertação e da justiça, sem esperar pela revolução civilizatória total e repentina (esta sim, utópica!), mas encontrando na meso-revolução social a verdadeira chave da mudança social, eficaz e progressiva, capaz de contagiar o mundo naturalmente.
Obviamente não pretendemos aproximar toda a ampla gama do espectro filosófico anarquista em torno da aristocracia, apenas aqueles setores mais afinados com o refinamento intelectual, social, ambiental e espiritual. Embora pretenda refutar as classes, o anarquismo segue de perto um espectro social amplo. Suas várias tendências lindam com os diferentes sistemas sociais, como críticas basicamente anti-estatistas a todos eles. 
Temos daí o anarcocapitalismo (ancap, libertarianismo) e o anarcocomunismo (comunismo libertário), havendo também o anarcomonarquismo (tribalista para J.R.Tolkien e federalista para Salvador Dali e também para o ex-príncipe Piotr Kropotkin que, não obstante, também era anarcocomunista declarado) e até o anarcoteocratismo (Tolstoi e outros eram anarcocristãos confessos). O anarcomonarquismo visa que “todos sejam reis de si mesmos”, havendo um rei central apenas para representar a nação internacionalmente e face suas qualificações para tanto. Podemos acompanhar as percepções estéticas sobre anarco-monarquismo e anarco-misticismo de Hakim Bey, um dos mais influentes pensadores anarquistas atuais, famoso pelo livro “Zonas Autônomas Temporárias”.**
O rótulo “anarquista” passa muitas vezes por ocioso, servindo a rigor apenas para aludir a um estilo de tratar as coisas com justiça e naturalidade, ainda que através dele muita gente se radicalize puerilmente fugindo ao bom senso e à razoabilidade, coisa que na verdade passa apenas por má-educação ou mau-caráter. Neste sentido, a grande mácula do anarquismo é fornecer uma ideologia mais específica para pessoas desajustadas e até para psicopatas; ainda que todos os regimes sociais possam abrigar indivíduos desta natureza.
Na presente matéria se busca um enquadramento histórico para o movimento anarquista, demonstrando que sua essência é aquilo que mais importa. A fim de dar a sua grande contribuição histórica, o anarquismo deve render-se ao relativismo e ao tempo. Deve compreender que nem todos estarão preparados ou acessíveis e que tudo anda por etapas: tais coisas não devem ser motivo para a desistência da ação transformadora refugiando-se numa torre-de-marfim (ideológica ou não). Cabe pois escapar dos dogmas absolutistas e saber que os diferentes podem conviver, valorizando sobretudo a obtenção das oportunidades mais que a igualdade final.

Não é necessário ter riqueza para ser um aristocrata social, basta ser idealista e socialmente responsável. A sociedade aristocrática (guerreira e intelectual) facilmente adquire o caráter de “escola de vida”. Todos devem começar humildes como cabe e poder alcançar os céus se este for o seu destino. O lídimo “senhor” –aquele que administra bens e instituições empregando trabalhadores- deve promover a evolução social. O trabalhador capaz deve poder ascender cultural e socialmente. Contudo, os regimes sociais realmente sadios não são patrimonialistas e sequer materialistas, os valores a serem buscados serão sempre mais culturais do que econômicos.
Isto responde pois a uma pergunta frequente: “quem escolherá os nobres?” Ora, a nobreza escolhe a si mesma, ao atender os compromissos históricos devidos. As causas são postas na mesa e as pessoas fazem as suas opções. Os nobres optam pelo mais belo, bom e benévolo para si e para o seu tempo. Como ele é relativamente desprendido jamais buscará fortunas; sendo ele um esteta preservará as harmonias do mundo, e como é naturalmente fraterno fomentará a paz. Ainda que não aprecia categorizações, o anarquismo fundamenta uma classe social, surgida das sínteses históricas e voltada para a libertação humana, inclusive do próprio materialismo.


A busca da virtude


O sentido pejorativo do termo “aristocracia” é algo mais ou menos moderno. Aprendemos nos livros de História que a aristocracia é apenas uma classe abastada de proprietários feudais e seus herdeiros mais ou menos ociosos, mas isto é uma enorme simplificação dos fatos, mostrados pelas lentes da propaganda ideológica burguês-materialista, cujo momento histórico também já está sendo ultrapassado.
Nascido sob a dogmática materialista-positivista inspirada no Iluminismo burguês, o anarquismo terminou divorciado da espiritualidade e sobretudo da religião, em função das ideologias e visões-de-mundo modernistas e também da própria decadência da igreja. Contudo, a anarco-misticismo representa uma filosofia com profunda tradição e grande aceitação moderna, havendo reconhecidos porta-vozes em nomes como Krishnamurti e Osho. O que tampouco representa uma virtude absoluta, levando no mais das vezes sua radicalização apenas à superficialidade e ao egotismo, ou à vaidade e à mediocridade.
O nobre-de-espírito trata antes de discernir entre aquilo que serve e o que não serve para a evolução humana. A nobreza da Baixa Idade Média soube fomentar um novo cristianismo, onde se restaurava a pureza original desta religião, resgatando a sua espiritualidade e fraternidade através do franciscanismo, de resto mais ecumênico, universal e renascentista. Ao invés de abandoar a sociedade à sua própria sorte, os verdadeiros idealistas de hoje também deveriam perceber que esta vertente da igreja poderia ajudar bem mais a humanidade do que as seitas evangélicas que estão cooptando ferozmente os mais pobres, a ponto de começar a adotar o discurso sociológico nas suas demagogias.
“Aristocracia” vem do grego areté, “virtude”, é a classe de pessoas que almejam o refinamento pessoal, o idealismo social, o contato íntimo com a Natureza, o romantismo matrimonial, o acesso ao mundo das ideias, e enfim expressar o valor humano até heroico.
Os anarquistas possuem uma pureza de aspiração peculiar; eles não se identificam essencialmente nem com a simplicidade dos proletários e nem com o hedonismo dos burgueses, ao passo que tampouco sentem os remotos apelos espirituais dos religiosos. O seu espaço natural é aquele intermediário da nobreza de alma, onde vivem numa ponte entre o céu e a terra fugindo tanto dos extremos quanto buscando abarcar o universo inteiro...
O anarquismo é plástico, ele se adapta e pulveriza porque abarca sínteses, vindo a receber os mais diferentes rótulos. Tal coisa reflete a sua busca pela autonomia e pela individualização da pessoa, podendo resultar na tribalização dos afins -ou até no isolamento, capaz de remeter à analogia com o asceta que integra a classe social seguinte.
Neste sentido, o anarquista representa aquela camada social que pode auxiliar a sociedade a avançar desde a burguesia materialista em direção à espiritualidade, sempre e quando ele encontre os seus próprios códigos sociais, refutando radicalismo irracionais.
Podemos porventura atribuir ao anarquismo uma classe? Nos sonhos e intuições anárquicas está afinal o mito da sociedade-sem-classes. Bem-entendido, porém, aquilo que realmente é possível realizar –e ainda assim através de métodos próprios, como são os laboratórios sociais, sementes da renovação humana e cultural-, é uma sociedade sem privilégios artificiais, onde dada qual possa desabrochar naturalmente para aquilo a que esteja destinado –e não pode haver ideia de liberdade mais ampla do que esta!
A intenção do anarquismo de colocar-se fora das classes sociais e, em decorrência, para além da História, passaria por coisa utópica, presunçosa até. Porém, quando damos oportunidades iguais a todos, e ainda assim se estabelece uma diferença entre as pessoas, já não podemos negar a diversidade social. Quando existe respeito mútuo, nem precisamos falar em termos de classe superior ou inferior, apenas de diferenças e funções, onde todas as profissões, vocações e capacidades são devidamente valorizadas. Neste caso, já não podemos acusar as classes idealistas e espirituais de estarem “explorando os excedentes gerados pelo trabalhador”, porque elas oferecem uma contraparte em cultura, proteção e orientação espiritual. A troca é feita pois efetivamente, entre trabalho físico, intelectual, militar e espiritual.


Em função desta diversidade ideológica, o anarquista também encontra funções diferentes nas diversas sociedades. Se no Velho Mundo a ideia da aristocracia acha-se amplamente defasada, o anarquista pode não obstante buscar algo ainda mais abrangente, como no aprimoramento da liberdade de oportunidades em ampla escala.
Por outro lado, se o anarquismo e o liberalismo soam como filosofias perigosas para as sociedades-em-construção, também está chegando um momento mais positivo no Novo Mundo, através do anarco-nacionalismo ou nacionalismo-filosófico.
Atualmente o anarquismo vem sendo visto como uma “crítica moral de comportamento social”, sem maior utilidade política. Suas metas são o autonomismo e a liberdade, porém tal coisa não pode ser imposta e nem generalizada, há quem prefira servir e ser orientado. Proudhon, o primeiro “anarquista” autodeclarado e que integra o rol dos “socialistas utópicos”, fazia parte do Parlamento francês e não era contrário às autoridades, contanto fossem justas e legítimas. Lao Tsé expos no clássico Tao te king regras liberais para o governante ideal, capaz de permitir ao povo a liberdade e a autonomia.***

Os regimes sociais

Os principais meios históricos de atuação política são:

1. Delegação humana (via institucional), República Burguesa
2. Imposição da mudança (via revolucionária), Ditadura Proletária
3. Fazer por conta própria (via autonomista), Monarquia Aristocrática
4. Delegação divina (via providencial), Teocracia Clerical

Não raro estes meios são combinados em algum momento, já que se entende que alguns visam antes reformas do que uma completa transformação do sistema. Hoje existe inclusive muita gente para optar por todos estes regimes, ainda que as pessoas estejam ideologicamente eclipsadas pela lavagem cerebral dos sistemas dominantes, e acabem se sujeitando a eles ou idealizando utopias híbridas sob a sua poderosa influência.
Assim, dos quatro regimes sociais citados, os menos conhecidos na atualidade são a Monarquia e a Teocracia, já que para subsistir na Modernidade tiveram que se despojar de suas principais bases sociais, ideológicas e econômicas, permanecendo de forma quase apenas decorativa ou simbólica por efeitos de tradição. Contudo, ainda existem reminiscência de aristocracias espalhadas pelo mundo, incluindo as pequenas nobrezas selvagens, onde podemos destacar as amazônicas onde os homens eram guerreiros se recusam ao trabalho agrícola.
Além de possuir uma história imemorial, a Monarquia alcançou o seu apogeu nos últimos milênios, e naturalmente acumulou problemas como acontece com todo o regime que engrandece. Mesmo na era cristã ele foi o modelo dominante, quando os bárbaros que derrubaram Roma o trouxeram refazendo novas sínteses culturais com o auxílio da Igreja.
Os regimes espirituais já estavam presentes nas Américas, mas através dos europeus também organizou importantes países. O imperador Dom Pedro II foi um simpatizante do Socialismo Utópico, e apoiou com terras e isenções a criação de uma colônia agrícola igualitarista no Paraná na década de 40, organizada pelo médico humanista Jean-Maurice Faivre e inspirada nas ideias dos chamados “socialistas utópicos”. O nome da Colônia, Tereza Cristina, foi uma homenagem à imperatriz.

Projeto da colonia utópica Tereza Cristina no Paraná
Hoje temos a experiência viva dos outros regimes sociais em condições semelhantes, de crise e decadência. Talvez seja o momento de dar um novo passo, através de sínteses que abranjam e superem estes quatro sistemas sociais? Talvez, porém cada coisa a seu tempo. Para dar um passo tão grande, é preciso ter todas as bases sociais bem representadas, porém ainda estamos na fase de construção das sociedades, especialmente no Novo Mundo pós-Conquista.

Na Grécia a aristocracia era simplesmente a classe guerreira e também a classe administrativa culta, os dirigentes públicos, aquelas pessoas com vocação social e capacidade administrativa no governo ou na religião, sem representar necessariamente oligarquias, ricos e proprietários. Consta inclusive que a aristocracia nasceu para combater a tirania concentrada no poder de um só, desvio das antigas monarquias tribais. “Para Aristóteles a aristocracia é o poder confiado aos melhores cidadãos, no sentido de possuírem melhor formação moral e intelectual para atender aos interesses do povo, sem distinções de nascimento ou riqueza.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Aristocracia)
Já no Classicismo havia estas transformações, onde a aristocracia termina se aproximando de uma Alta Burguesia. Em Roma a antiga aristocracia toou a forma do Patriciado (do grego patriótes, donde “patriotas”), nobres ligados à administração pública no exército, na religião e na justiça, e que eram grandes proprietários de terras descendentes dos antigos chefes tribais, sendo os únicos que se destinavam aos altos cargos políticos. Após a queda do Império Romano a nobreza também foi equiparada no Ocidente aos plebeus, como governantes de comunas, municípios e repúblicas aristocráticas. (ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Patr%C3%ADcio)
** A terminação “cracia” denota governo mas não um Estado. Às vezes precisamos relativizar as palavras, até por falta de opções. O objetivo da anarco-monarquia seria a socialização da nobreza e a liberdade integral de-cada-um. A anarco-monarquia pode ser a monarquia tribal controlada ou federada que permite preservar a face humana das instituições e seu controle social. Já a contestação do anarco-misticismo deve-se ao materialismo inerente ao anarco-humanismo dogmático, contudo o anarco-misticismo representa uma realidade clássica desde o famoso mito dos anjos caídos por orgulho e alimenta toda uma corrente “não-engajada” e comumente amadorística (por vezes malévola também) da espiritualidade.
*** Tratado por muitos como uma banalização do autodidatismo, o anarquismo está perigosamente próximo da arrogância e da insolência fútil, podendo passar como uma sistematização pueril da vaidade e do orgulho, incapaz de reconhecer a excelência no outro ou de expressar valores capitais como a humildade e a sociabilidade, coisas que também afrontam a justiça e apenas servem para libertar o ego -daí a compulsão para às drogas como forma artificial de autocontrole psíquico. O bom anarquista se destina à evolução cultural através da disciplina e do estudo (integrando assim “classes superiores”), o mau anarquista conduz à desordem e ao isolamento social ou legal.

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