Transição ideológica e contradição


Depois da queda do Muro, acirrou-se a problemática deste verdadeiro limbo filosófico que é a chamada new age, um movimento de reconstrução cultural integrado à Modernidade, e que ainda contém muito de desconstrução, levando todavia muita gente a “filosofar” como se se tratasse das “novas coisas”, quando na verdade não passa de tendências momentâneas que ainda não se afirmaram como contexto histórico oficial. Porque se tem intentado edificar doutrinas completas que combatem esta situação de crise institucional, em atitudes algumas vezes amadorísticas e prematuras, absolutistas, nihilistas ou negativas, quando se poderia tentar apenas uma reforma ética ou conjuntural.
Ora, nenhuma teoria amadurece antes de virar prática, e quando ela se afirma no solo da História, seguramente apura as sínteses necessárias. Enquanto a grande maioria ainda tenta viver as velhas teses acomodadas, muitos ainda andam na esfera da antítese crítica, uns poucos têm elaborado sínteses e raríssimos já alcançaram mateses (propostas) reais. Nisto, já ajuda muito a própria formação do filósofo, porque aquele que tem sido um prático na sua vida –seja em que nível for–, também tenderá a ser realista na vida de todos. Por “filósofo prático”, queremos dizer, aqui, um profissional, alguém dedicado que leva a sério a sua atividade e que realizou uma formação filosófica sólida, que não é um lírico, um diletante ou um amador.
As fortes mudanças ideológicas hoje em voga, dão margem a migrações que não raro deixam um rastro de incoerências, dificultando a geração de novos contextos sociais de transformação ativa do mundo. Contudo, aquele que alimenta graves contradições, deveria fazer uma análise das suas posturas, seja uma análise profissional ou não. Aqui pretendemos dar uma contribuição ao tema.
A precipitação filosófica é um traço egocêntrico, porém esta imaturidade pode ser crônica quando deriva de um estado-de-consciência limitado, materialista e individualista, que impossibilita as sínteses. Nada impediria uma visão verdadeiramente reformista, crítica e depuradora das coisas, porém sem chegar aos extremos da negação e da destruição, tal como realizam os mestres iluminados que vêm ao mundo nos períodos “anárquicos” do mundo, como foram os casos de Buda e de Jesus, com suas doutrinas interiorizantes e não-estruturantes –o que é muito diferente de destruidoras, quiçá desconstrutoras. Estes avatares não pregaram contra as instituições, apenas não deram ênfase em algo que não merecia ênfase porque já estava suficientemente estabelecido na consciência humana, e fazê-lo de outro modo seria colocar lenha num incêndio que merecia mais ser apagado. Pelo contrário, eles pregaram a interiorização da consciência, a fim de equilibrar as coisas e preencher estas instituições de conteúdo.
Acontece muito que pessoas engajadas numa causa, quando muito desiludidas, podem ficar tão arrependidas, que não querem mais saber de nada que pareça com aquilo que defenderam. Isto acontece muito com os seguidores de fanáticos e radicais como Stalin e Hitler, que uma vez visíveis os terríveis malefícios dos atos destes tiranos, e temerosos da opinião pública, passam a exercer um repúdio generalizado por tudo aquilo que remotamente tenha a ver com tais personagens. Até porque, de forma algo associada a isto, existem os cínicos e demagogos que se valem destes exemplos extremos, como pretexto para combater toda e qualquer ideologia mais ou menos afim.
Tudo isto caracteriza, pois, uma espécie de trauma, o remorso de ter apoiado causas perniciosas, somado ao medo de ser acusado ou responsabilizado. Estas pessoas até podem ter alguma boa vontade, mas também tem problemas íntimos não-resolvidos.
Sabemos que muitos militantes políticos mais ou menos radicais, migraram para outras filosofias, como a ecologia e a espiritualidade, até como “alternativa” ideológica. Porém, estas pessoas nunca deixaram de todo de ser aquilo que eram, porque no fundo elas estão mais é à procura de “outras formas de luta”, mas sem abrir mão de certo núcleo ideológico pessoal, não raro de fundo patológico. Este é um fato histórico e sociológico bastante evidente em nossos dias, quando vemos uma fusão saudável e natural entre movimentos sociais, espiritualidade e “etnicismo”.
O fato tem sido identificado politicamente; já faz algum tempo, as forças capitalistas repressivas cognominam de “melancia” a certo grupo de pessoas que são “verdes por fora e vermelhas por dentro”, quer dizer, ecologista declarado, mas ocultamente comunista –coisa esta que poderia desencadear repressões mais violentas contra os ecologistas. Nos últimos tempos, a luta ambientalista tem sido vista realmente como um novo reduto para as “esquerdas”, porque as forças cegas do capitalismo e do imperialismo afetam seriamente o meio-ambiente, muito embora as atitudes da ideologia marxista, tampouco demonstrem nada de muito mais avançado ambientalmente –de fato, um dos grandes fatores do fim da União Soviética, foi o terrível acidente nuclear da usina de Chernobil, eliminando uma das zonas mais férteis do império soviético. Nisto tudo, seria importante e mais seguro, o surgimento de uma ideologia ambientalista de viés científico, e também espiritual.
É notório realmente, que a ecologia surge como elemento determinante nestas pessoas que migram de política para a espiritualidade, como se tivessem necessidade deste elo material, ainda que a Natureza seja uma realidade tão ampla e profunda, que também contemple dimensões sutis. Assim, o xamanismo é outra forma mística que atrai estes “espíritos-em-transição”.
Sucede comumente, porém, neste novo contexto, e como seria mesmo inevitável, certa crise de legitimidade, acarretando as “contradições” citadas de início. Contradições é também aquilo que acontece quando colocamos as emoções acima da razão superior; alguém pode ter uma jóia nas mãos e ser incapaz de ver a sua luz, porque está simplesmente invertendo as premissas. Isto se deve a que tais pessoas não tem uma autêntica vocação espiritual ou ainda não se trabalharam de maneira satisfatória.
É assim que vemos o uso ilegítimo de idéias e de movimentos, que certas pessoas buscam enquadrar dentro das suas velhas idéias. Observamos daí políticos tentando que a espiritualidade se adapte às suas idéias sociais, ou seja, querem ver a mística desde o ângulo da política, e não o inverso como deveriam fazer. Trata-se geralmente de uma distorção e de um reducionismo, especialmente quando afrontam as grandes sínteses reveladas e promovem apenas novos fanatismos irracionais, quiçá apenas ainda não denunciados historicamente. Um dos aspectos notáveis das contradições destas pessoas, é certo histerismo e denuncismo, confundindo as ordens e as hierarquias espirituais com tiranias e fascismos, coisa extensível às ordens sociais organizadas. Podemos até mesmo entrever ali certa estratégia gramsciniana, onde a “mudança não poder acontecer do alto para baixo”, e ao indivíduo não cabe um papel de relevo, e sim ao “partido”. Autoridade é irremediavelmente associada a autoritarismo, encobrindo a inveja e a mediocridade sob a capa da ideologia. Estes políticos “táticos” migram de ambiente, mas mantém as suas ideologias, tentando cooptar simpatizantes em novos meios para velhas causas, sem respeitar a essência do meio onde estão e se aproveitando da inconsistência política dos seus freqüentadores, tratando então de tentar implantar artificialmente a sua visão política em ambiente alheio. E nisto atacam, é claro, especialmente as lideranças potenciais, num combate desproporcional e pouco legítimo de idéias. Gramsci era um estrategista da micropolítica (às vezes parece fazer parte de sua estratégia renegar Gramsci), cuja base está no discernimento entre Ocidente e Oriente, onde este daria mais valor ao indivíduo e à autoridade, enquanto aquele priorizaria as massas.
Quando um destes “ativistas” invade um espaço democrático, ele luta para que o espaço assim se mantenha, para poder impor a baderna e a luta ideológica. Outra tática muito usada então é a “propagandística”. Na falta de argumentação válida, como quando se depara com um oponente intelectualmente mais forte, o ativista trata de insistir continuamente numa idéia, buscando marcar o inconsciente dos ouvintes ou leitores. Esta é conhecida como a técnica nazista de Goebels, científica e efetiva, usada em algum grau por quase todos os meios de propaganda. Quando falta conhecimento apela-se para o lado pessoal, e quando as idéias são curtas impõe-se o ostracismo, tentando trazer assuntos particulares à tona, não raro caluniando e buscando alimentar nos outros o preconceito ideológico ou pessoal, pois a bem da verdade muitas vezes esta conduta fanática e hipócrita mascara enfermidades mentais antigas e má-formação do caráter.
Não obstante, muitas destas visões, sequer na esfera filosófica ou política teriam maior coerência e legitimidade, nos termos do materialismo. Que dizer da espiritualidade, onde tentam penetrar? Apenas podem fazer estragos, promover discórdia e confusão. Alguns talvez nem tenham tal má fé, mas inexperiência e ignorância. Por isto, vamos tomar emprestadas as palavras de Karl Marx quando chamar o anarquismo de “seita” e “amadores” sociologicamente. Por quê razão Hegel e Marx conseguiram tantas coisas, enquanto Proudhon, Bakunin e Malatesta pouco alcançaram? Porque aqueles identificaram a hierarquia social, enquanto a anarquia nega autoridade e rebanho, nega a história e é míope para a realidade. Mesmo com suas limitações, Hegel e Marx seguem sendo úteis na evolução, ao passo que os anarquistas apenas gerarão confusão e divisão, dando matéria somente para os nossos sonhos. Lê-los até pode ser útil depois das batalhas, mas nunca antes.
O mau-filósofo, o amador, mistura emoções e projeta desejos pessoais nas suas idéias, e o que ele quer para si pensa querer para todos, de imediato ou não, colocando-se assim, narcisisticamente, como um paradigma absoluto de evolução, esquecendo que ele mesmo está em evolução. Para conhecer a Verdade, é preciso isenção pessoal. A verdade é um pássaro livre que foge às cadeias dos preconceitos - contra ou a favor. Não é possível pensar o futuro, sem uma avaliação correta do passado. Tal coisa deve ser tão impessoal quanto possível, de modo que o distanciamento no tempo também ajuda, assim como a evolução da consciência.
Nota-se daí que as pregações destes migrantes ideológicos enfatizam aparentemente a “democracia” em si mesma e com ênfase, diferente do que havia no passado quando a “ditadura do proletariado” era vista como uma opção social. Ora, a Democracia é uma forma de dar conhecimento à vontade do povo, não sendo um fim em si mesma. Para as forças de esquerda, por exemplo, até antes do golpe do Chile ela seria um instrumento para implantar o Socialismo. Hoje, ela pode servir para lutar em favor da Ecologia e muitas outras causas...
Foi assim também que, em 1993 houve no Brasil um plebiscito no qual a sociedade brasileira decidiu manter como forma de Governo a República e não adotar a Monarquia (da qual mantém uma tradição quase única e principal nas Américas), e manter como sistema de Governo o Presidencialismo e não adotar o Parlamentarismo. Em nenhum momento se discutiu a “Democracia”, porém a Democracia permitiu discutir estas outras coisas. Que isto sirva de lição para todos nós!
O Estado-de-direito visa permitir a livre-expressão das idéias e das opiniões, sem coerção. Ter na Democracia um fim em si, seria dizer que o livre-arbítrio se auto-justifica, e negar que existe um Plano maior ou que “tudo é permitido” ao modo anarquista ou luciférico. A Democracia sem uma direção, pode se tornar a seara do caos, por isto, as forças conscientes da sociedade devem imprimir tendências criativas e positivas a isto, sob pena de apenas fomentar o oposto, na forma da violência, da libertinagem, da exploração, da devastação e da decadência moral. Uma transição de épocas sempre traz muito questionamento, porém isto se destina à uma depuração e renovação dos valores, não meramente ao total abandono dos valores e ao esvaziamento das instituições. Assim, que as pessoas conscientes sejam ativas e dêem o melhor de si, porque o “outro lado” também vai naturalmente se fortalecer.
Estes democratistas (não-verdadeiramente democráticos) confundem daí os meios com os fins, deixando tudo algo sem sentido. Democracia é uma Forma de Governo, não Forma de Estado; é aquele ambiente social no qual as coisas podem ser discutidas –inclusive a Forma de Estado e a própria Democracia-, a partir de um estado-de-direito pleno. Este também se mistura com o “poder do povo”, porque todos têm direito à opinião, à manifestação e ao crescimento -de fato, todos devem poder evoluir, o que não significa que a opinião de todos tenha um peso final igual, porque a democracia é o direito de todos poderem evoluir mas a capacidade de cada um já será um outro assunto.
Na verdade, existe realmente certa precedência de atividade política “esquerdista” nos meios espirituais, que tem favorecido esta migração ideológica pós-muro de Berlim. Inicialmente, havia já a Teologia da Libertação, na qual sabidamente setores da Igreja Católica simpatizavam com o marxismo. Outra frente combina ecologia com espiritualidade através do franciscanismo, parte dela vinculada à Teologia de Libertação. É sabido que São Francisco hesitou muito em estabelecer Ordens, e quando o fez determinou atenuantes, como ao nomear de “Irmãos Menores” e coisa assim. Seria esta já uma tendência de época, talvez movida pela falta de legitimidade do clero, que Lutero já se recusará em definitivo em encarar. A Reforma representará, pois, um sério abalo na idéia da hierarquia religiosa.
Mesmo dentro da mística e do esoterismo, não raro naturalmente afeita ao ambientalismo, formou-se uma tendência anarquista através das pregações de filósofos como Krishnamurti e Osho, repletas de contradições mas de forte repercussão, pese ser irregular e heterodoxa, ocasionando tudo isto uma separação com o espírito-de-ordem tradicional. Krishnamurti é bastante radical, e mostra só um lado da moeda, porque tudo tem dois lados. Sua filosofia é considerada uma das mais monótonas e monocórdicas que existem, pois té o Zen, que focaliza o Sunyata (Vazio) aqui e ali, flerta com a manifestação: samsara é nirvana, reza uma das suas grandes máximas, ao modo de koan. O “Caminho do Meio” é uma premissa Mahayana, onde se insere o Zen. A Tábua de Esmeraldas do hermetismo, ensina a buscar as “forças do alto e do baixo” como forma de liberação.
Vale mencionar ainda que a Maçonaria, ondem meio mística e meio social, tem lutado historicamente pelo republicanismo. Além do fato do budismo haver sido golpeado no Tibet e o popular Dalai Lama haver deixado de enfatizar no exílio a importância da teocracia tradicional, talvez por razões estratégicas, de forma semelhante como em tempos anteriores certas forças de esquerda viam na democracia uma forma de alcançar o poder, coisa esta que chegou a se realizar no Chile de forma mais substancial, sendo ali mesmo abortada violentamente (desde 1973), encerrando todo um ciclo de aspirações iniciado em 1968.
Coisas assim, ainda podem produzir uma verdadeira autonegação perniciosa, produzindo crises íntimas, como no caso de um líder que tem preconceito contra hierarquia, que passa a ter medo de liderar, ou senão, que apenas finge não liderar, numa dicotomia entre discurso e prática. Finalmente, ocorrem as ideologias cruzadas e ilegítimas, com flagrante inversão de valores e tentativa de usurpação de autoridade. Isto se confunde com condutas até comuns nos meios místicos e intelectuais, onde também é comum a inveja e a competição, na medida em que os egos ainda impedem a visão da prioridade da união para finalmente se alcançar aquela necessária e oportuna mudança cultural, pela qual todos terão finalmente o seu “lugar ao Sol”
Vemos num primeiro momento, duas possíveis soluções para estas pessoas em transição. Primeiro, elas devem fazer um esforço para ter coragem de não renegar totalmente as suas antigas bases ideológicas, não a ponto de tal coisa se transformar numa auto-negação. Depois, evitar a dogmática, pois afinal, um intransigente é sempre um intransigente, mesmo que defenda a mais defensável das causas. Por fim, admitir intimamente ainda ter muito o que aprender, para chegar de fato a novas posições na vida, ou seja, uma nova escola deve ser tomada, com novos métodos de aprendizado, nos quais aspirem pela regularidade da Ordem tradicional, como uma forma de “retorno à casa do Pai”.
Hoje se oferece um Caminho, dentro de uma síntese perfeita capaz de atender a este conjunto de aspirações, no contexto do Projeto-Exodus – um Mundo para Todos, e do Evangelho da Natureza. O Projeto quer preparar o terreno para os regimes-de-Ordem, através do aprimoramento da Democracia, visando a educação e a conscienização da sociedade para as coisas superiores. E este novo Evangelho oferece uma Trindade na forma Criador-Criatura-Criação (não muito distinta da Trimurti indiana, portanto), tendo como “Programa” a tríade Espiritualidade-Fraternidade-Ecologia.
Assim, através desta doutrina, que se assenta também sobre as bases históricas da Revelação trinitária de Joaquin di Fiori, temos harmonicamente contemplada o conjunto destas novas tendências, não sob a pauta da anarquia, mas tampouco sobre bases romanas. O catolicismo (universalidade) e o vicariato se depuram e renovam, como verdades mais proféticas e espirituais do que manifestadas, em paralelo com a própria esfera humana que é coroada pela revelação das instituições plenas do clero, ao passo que a ordem religiosa também se sutiliza ou quase se “informaliza”. Naturalmente, tal coisa se refletirá nas monarquias vindouras, evitando pompa e ostentação, mas voltada para a militância e a busca do contato da alma ou da consciência ativa.
Esta conjuntura também pode será analisada sociologicamente, dentro da transição atual de classes, pois o atual ciclo nacionalista evolui para uma fase terminal de base filosófica (ver Calendário Cronocrator).

Da obra "Crise, Regeneração e Evolução do Estado", Editorial Agartha

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